História da Igreja
27 Como fogo na grama seca


“Como fogo na grama seca”, capítulo 27 de Santos: A História da Igreja de Jesus Cristo nos Últimos Dias, Volume 2, Nenhuma Mão Ímpia, 1846–1893, 2020

Capítulo 27: “Como fogo na grama seca”

Capítulo 27

Como fogo na grama seca

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Homem montado num cavalo e conduzindo outro cavalo

Nas semanas que antecederam o dia marcado para seu julgamento em janeiro de 1872, corria solto o rumor de que Brigham Young retornaria a Salt Lake City. Os promotores do território estavam certos de que Brigham preferiria se tornar um fugitivo da justiça do que se apresentar diante de um juiz.1

Contudo, no fim de dezembro, Daniel Wells recebeu uma carta urgente do profeta. Nela, Brigham informava: “Vamos nos colocar à disposição na hora designada para estar diante do tribunal”.2 No dia seguinte ao Natal, ele viajou mais de 110 quilômetros em meio à tempestade de neve a fim de se encontrar com Daniel em Draper, um vilarejo 30 quilômetros ao sul de Salt Lake City. De lá, embarcaram em um trem para o norte, e Brigham chegou em casa pouco antes da meia-noite.

Uma semana depois, um delegado dos Estados Unidos prendeu o profeta e o conduziu até o tribunal do juiz McKean. Brigham permaneceu calmo e confiante durante toda a audiência. Chamando atenção para sua idade avançada e seus problemas de saúde, os advogados do profeta solicitaram que ele fosse solto mediante o pagamento de fiança. McKean negou o pedido e colocou Brigham em prisão domiciliar.3

O julgamento estava marcado para ter início pouco tempo depois, e o Salt Lake Tribune previa que todos os jornais dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha publicariam os procedimentos. No entanto, o “Grande julgamento” foi adiado, a princípio por alguns dias, que logo se tornaram semanas. Brigham ficava em casa a maior parte do tempo, em geral sob a custódia de delegados. Porém, participou de alguns eventos sociais, como na ocasião em que foi acompanhado de um político a uma festa de aniversário surpresa para Eliza Snow, no edifício da Ala XIV.4

De Washington, D.C., George Q. Cannon enviava a Brigham relatórios frequentes sobre um caso que os santos haviam levado à Suprema Corte dos Estados Unidos, a mais alta instância do país. O caso alegava a ilegalidade praticada pelo juiz McKean, que deliberadamente excluía os santos dos grandes júris no território de Utah. Se a Suprema Corte fosse contrária à prática do juiz, todas as sentenças pronunciadas por júris impropriamente formados em Utah — inclusive aquelas contra o profeta — cairiam imediatamente por terra.5

A Suprema Corte votou o caso em abril. Tanto o juiz McKean quanto George estavam no tribunal para ouvir a sentença. Apesar de seus advogados estarem confiantes de que a corte seria favorável a eles, McKean parecia ansioso durante a leitura da decisão.6

“No geral”, declarou o juiz que presidia à seção, “somos da opinião de que o júri neste caso não foi selecionado e convocado em conformidade com a lei”.7

O juiz McKean saiu da sala reclamando da sentença e alegando que não havia feito nada de errado. Em pouco tempo, telegramas começaram a chegar a Utah. Todas as sentenças proclamadas por júris formados ilegalmente no território foram anuladas. Brigham Young estava livre.8

“A Suprema Corte se pôs acima dos preconceitos religiosos e das influências políticas”, disse George com euforia em uma carta para Brigham escrita naquele mesmo dia. Contudo, ele temia que a decisão da corte agravasse ainda mais a inimizade daqueles que perseguiam a Igreja.

“Não me surpreenderia”, afirmou George, “se redobrarem os esforços para aprovar legislações contra nós”.9


No mês de abril, santos de todas as partes do Havaí foram a Oahu para participar de uma conferência em Laie, o lugar de reunião que haviam usado nos últimos sete anos. Cerca de 400 membros viviam no assentamento ao longo do ano. Havia uma pequena capela, uma escola e uma grande fazenda onde os membros locais e os missionários de Utah cultivavam cana-de-açúcar.

Na conferência, 13 missionários locais testificaram sobre as recentes experiências que haviam vivido. Sob a direção de Jonathan Napela, que havia sido chamado para supervisionar o proselitismo no arquipélago, os missionários haviam batizado mais de 600 pessoas. O número de membros da Igreja no Havaí já ultrapassava os 2 mil.10

Cada élder prestou testemunho dos milagres que havia presenciado no campo missionário. O Senhor havia curado um homem paralítico após os missionários terem exercido fé e orado em seu favor.11 Outro homem, que havia quebrado o braço ao cair de uma mula, fora completamente curado ao ser abençoado por dois missionários. Outros élderes haviam ministrado diversas vezes a uma garotinha que não conseguia andar. Após cada bênção recebida, ela melhorou aos poucos, até que foi capaz de correr e brincar novamente.12

Depois da conferência, os missionários continuaram a pregar o evangelho e a curar os enfermos. Dentre os que buscaram seu auxílio, estava Keʻelikōlani, a governadora da maior ilha do arquipélago do Havaí. Ela pediu aos santos que orassem em favor de seu meio-irmão, o rei Kamehameha V, que estava à beira da morte. Napela conhecia bem o rei, então ele e H. K. Kaleohano, outro experiente élder da Igreja, foram ao palácio e se ofereceram para orar em favor dele.

“Ficamos sabendo de sua grande aflição”, disseram eles, “e desejamos sinceramente que sua saúde seja restaurada”. O rei aceitou a oferta, e os missionários se curvaram em reverência. Kaleohano então ofereceu uma fervorosa oração.

Quando o missionário terminou a prece, Kamehameha já tinha uma aparência bem melhor. Ele então contou aos élderes que alguns membros do governo estavam pressionando-o e exigindo que os santos fossem proibidos de pregar no arquipélago, mas ele não lhes havia dado ouvidos. A constituição do Havaí garantia ao povo o direito à liberdade religiosa, e ele fazia questão de assegurá-lo.

O rei teve então uma longa e agradável conversa com Napela e Kaleohano. Quando os élderes estavam prestes a sair, alguns homens chegaram trazendo peixe para a família do rei. Ao vê-los, Kamehameha apontou para Napela e Kaleohano e disse: “Não se esqueçam desses reis”.

Ele entregou a cada élder um cesto com peixes e se despediu.13


Mais ou menos na mesma época da conferência de abril em Laie, os jornais norte-americanos fervilhavam com a recente publicação de um livro sobre o casamento plural, escrito por Fanny Stenhouse, uma das mulheres mais proeminentes do Novo Movimento. Na obra, Fanny retratava as mulheres santos dos últimos dias como infelizes vítimas de opressão.14

As mulheres da Igreja ficaram chocadas diante daquela descrição. Acreditando que seria melhor que as mulheres santos dos últimos dias falassem por si mesmas, em vez de permitirem que outras falassem erroneamente por elas, a jovem Lula Greene, de apenas 23 anos, começou a publicar um jornal para mulheres em Utah. O periódico se chamava Woman’s Exponent.15

Lula era uma talentosa escritora e servia como presidente da Associação de Resguardo das Moças. Após publicar algumas poesias de Lula, o editor do Salt Lake Daily Herald queria que ela escrevesse para seu jornal. Porém, após a equipe do jornal relutar em contratá-la, ele sugeriu que ela fundasse seu próprio periódico.

Lula ficou intrigada com a ideia. As recentes reuniões de indignação haviam demonstrado a vigorosa influência que as mulheres santos dos últimos dias podiam exercer quando falavam sobre temas de seu interesse. No entanto, as mulheres tinham poucas oportunidades de expressar publicamente sua opinião não só dentro, mas também fora da Igreja. Além do que, grande parte das boas ações feitas pela Sociedade de Socorro e pela Associação de Resguardo passavam despercebidas, especialmente por aqueles de fora do território.

Lula compartilhou seus planos para a criação do jornal com Eliza Snow, que então pediu a opinião de Brigham Young, que era tio-avô de Lula. Ambos a apoiaram e a incentivaram a seguir em frente. A pedido de Lula, Brigham a designou em uma missão especial para servir como editora do jornal.16

O primeiro número do Woman’s Exponent foi publicado em junho de 1872. O periódico trazia notícias locais, nacionais e internacionais, bem como editoriais, poesias e relatos sobre as reuniões da Sociedade de Socorro e da Associação de Resguardo.17 Lula também publicava cartas das leitoras, proporcionando um espaço para que as mulheres santos dos últimos dias compartilhassem suas histórias e expressassem sua opinião.

Em julho, Lula publicou a carta de uma mulher inglesa chamada Mary, que contrastava sua dura vida como empregada doméstica em Londres e em Nova York com a vida que levava em Utah. “Nós, ‘mulheres mórmons’, temos o dever de escrever e dizer ao mundo — quer acreditem em nós ou não — que não somos as pobres e oprimidas criaturas que dizem que somos”, declarou ela. “Não fui oprimida aqui, mas vim por livre e espontânea vontade, assim como sou livre para partir, para trabalhar ou para permanecer.”

Por fim, acrescentou: “Gosto muito do Exponent. É feito com bom senso”.18


Enquanto isso, no norte de Utah, as tribos da nação indígena shoshone do Oeste estavam à beira da inanição. Quase 10 mil colonos brancos, a maioria deles santos dos últimos dias, estavam habitando as terras dos shoshone em Cache Valley e região, o que levou à escassez das fontes locais de alimento.19

Quando os santos chegaram a Cache Valley em meados da década de 1850, um líder shoshone chamado Sagwitch cultivou um bom relacionamento com os líderes locais da Igreja, em especial com o bispo Peter Maughan, que às vezes ajudava os shoshones do escritório do dízimo. Contudo, no final da década de 1850, a tensão entre os povos aumentou à medida que mais santos se estabeleceram no vale e os animais de caça foram rareando.

A fim de prover alimento para sua família, alguns shoshones começaram a pilhar o gado dos santos, como uma forma de compensação pelas terras perdidas e pelo esgotamento dos recursos naturais. Talvez numa tentativa de pôr um fim às pilhagens, mas, com certa relutância, os santos ofereceram aos shoshones farinha e carne. Porém, aquela oferta não compensou os transtornos causados pela mudança dos membros para Cache Valley.20

Naquela época, os shoshones também tinham confrontos com o governo dos Estados Unidos. O coronel Patrick Connor, comandante das tropas do exército americano alocadas em Salt Lake City, usava os confrontos como desculpa para atacar os shoshones. Numa manhã de janeiro de 1863, enquanto acampavam perto de Bear River, Sagwitch e seu povo acordaram sob o ataque de soldados. Os shoshones bateram em retirada para posições defensivas e tentaram combater o exército. Contudo, foram rapidamente cercados e atacados sem piedade.

Cerca de 400 shoshones, entre homens, mulheres e crianças, morreram no ataque àquele acampamento. Sagwitch sobreviveu ao episódio, assim como sua filha bebê e seus três filhos. No entanto, sua esposa, Dadabaychee, e dois enteados estavam entre os caídos.21

Logo após o ataque, santos de assentamentos nas proximidades chegaram para cuidar dos shoshones feridos. Porém, Sagwitch não confiava nos santos por causa do ataque. O exército havia sido guiado até os shoshones por Porter Rockwell, um santo dos últimos dias que às vezes era empregado como batedor do exército. Alguns santos de Cache Valley haviam assistido ao desenrolar do massacre do topo de uma colina nas cercanias, e outros haviam abrigado e alimentado o exército após o ataque. Até mesmo Peter Maughan, que descreveu as ações dos soldados como “inumanas”, acreditava que os shoshones haviam provocado a violência. E alguns santos até mesmo haviam declarado que o ataque era uma intervenção divina.22

Agora, quase uma década após o massacre, Sagwitch e seu povo ainda guardavam mágoas em relação aos colonos. A disposição que os santos mostravam de usar os recursos da Igreja a fim de prover alimentos e suprimentos para os shoshones foi capaz de ganhar de volta parte da confiança de outrora, mas a perda de inocentes, de terras e de recursos colocou os shoshones em uma situação desesperadora.23

Na primavera de 1873, um respeitado líder shoshone chamado Ech-up-wy teve uma visão em que três índios entravam em sua cabana. O mais alto deles — um homem belo e de ombros largos — disse-lhe que o Deus dos santos era o mesmo Deus adorado pelos shoshones. Com a ajuda dos santos, eles iriam construir casas, cultivar o solo e receber o batismo.

Na visão, Ech-up-wy também viu shoshones trabalhando em pequenas fazendas, tendo alguns homens brancos com eles. Um deles era George Hill, um santo dos últimos dias que havia servido missão entre os shoshones 15 anos antes. Ele falava s língua shoshone e às vezes distribuía alimentos e outras provisões entre eles.

Depois de ouvir sobre a visão de Ech-up-wy, um grupo de shoshones foi até a casa de George em Ogden.24


Quando acordou, George Hill se deparou com um grupo de shoshones do lado de fora de sua residência, esperando para falar com ele. Após cumprimentar os visitantes, o líder daqueles homens explicou a George que eles haviam aprendido, por meio de inspiração, que os santos eram o povo do Senhor. “Queremos que você venha para nosso acampamento para nos ensinar e nos batizar”, disse o homem.

George respondeu que não poderia batizá-los sem a permissão de Brigham Young. Desapontados, os shoshones partiram, mas posteriormente retornaram e pediram mais uma vez para serem batizados. Mais uma vez, George lhes contou que precisava esperar a orientação do profeta.25

Pouco depois, George se encontrou com Brigham em Salt Lake City. “Já faz algum tempo que carrego um peso sobre os ombros”, declarou Brigham. “Tentei deixá-lo para lá, mas a partir de agora eu o transmito a você. Será seu fardo de agora em diante. Quero que tome conta da missão aos índios em todo o norte do país.”

Ele aconselhou George a estabelecer um lugar de reunião para os shoshones e lhes ensinar a cultivar a terra. “Não sei exatamente como você fará isso”, ele declarou, “mas você encontrará um jeito”.26

No dia 5 de maio de 1873, George viajou de trem para uma cidadezinha quase 50 quilômetros a norte de Ogden. De lá, ele partiu a pé para o acampamento de Sagwitch, que ficava a 20 quilômetros. Após caminhar pouco mais de um quilômetro, um velho shoshone chamado Tig-we-tick-er se aproximou dele sorrindo. Ele comentou que, naquela manhã, Sagwitch havia profetizado que George visitaria seu acampamento.

Tig-we-tick-er então explicou a George como chegar ao acampamento e prometeu que voltaria logo para ouvi-lo pregar. No caminho, George encontrou dois outros shoshones, que também falaram sobre a profecia de Sagwitch. Maravilhado com aquilo, George se perguntou como Sagwitch poderia saber o dia e a hora exatos em que ele viria. Para ele, aquilo foi um sinal de que a obra do Senhor estava de fato começando entre os shoshones.

Pouco depois, George viu Sagwitch se aproximar a cavalo e conduzindo outra montaria. “Achei que você estaria cansado”, comentou Sagwitch, “então trouxe um cavalo para você”.

Eles cavalgaram juntos até o acampamento. Centenas de pessoas estavam aguardando para serem ensinadas. George pregou por quase duas horas e descobriu que muitos desejavam se unir à Igreja. Naquela tarde, ele batizou 101 shoshones, inclusive Sagwitch, e os confirmou à beira da água. Em seguida, ele partiu do acampamento bem a tempo de pegar o último trem para Ogden.27

No dia seguinte, George escreveu uma carta para Brigham Young. “Nunca me senti melhor na vida nem tive um dia mais feliz”, declarou ele. Também informou que, da mesma forma, os shoshones pareciam felizes e planejavam realizar reuniões de oração todas as noites. Após mencionar a difícil situação deles, George solicitou sacas de farinha para distribuir entre o povo.28

Ele também escreveu contando sobre os batismos para seu amigo Dimick Huntington, que também falava o idioma dos shoshones. “Meu único desejo é ter o Espírito de Deus comigo para me ajudar”, afirmou George, “para que eu seja capaz de realizar a obra que é requerida de minhas mãos”.

“Dimick, faça tudo a seu alcance para me ajudar”, rogou ele. “A obra está se espalhando como fogo na grama seca.”29


Mais ou menos na mesma época em que os shoshones do Norte abraçaram o evangelho, Jonathan Napela descobriu que sua esposa, Kitty, havia contraído hanseníase, ou lepra, e deveria ir para a ilha de Molokai. Na esperança de conter o avanço da doença no Havaí, o rei Kamehameha V havia estabelecido uma colônia em Molokai, na península de Kalaupapa, para isolar aqueles que mostrassem os sintomas da doença. Como a lepra era considerada incurável, o banimento para a colônia geralmente durava a vida toda.

Ansioso para não se separar de Kitty, Napela conseguiu um emprego em Kalaupapa, como o supervisor assistente da colônia. Seus deveres incluíam distribuir rações e enviar relatos frequentes para o conselho de saúde. Aquele emprego o colocava em contato com pessoas infectadas, o que aumentava suas chances de contrair a doença.

Quando ele e Kitty chegaram na colônia na primavera de 1873, Napela começou a pregar o evangelho e a realizar reuniões dominicais com os santos leprosos. Ele também fez amizade com o padre Damien, um sacerdote católico que servia em Kalaupapa, e com Peter Kaeo, membro da família real havaiana, o qual contraíra a doença e chegara pouco após Kitty e Napela.30

Na colônia, Peter vivia com relativo conforto, em um chalé com vista para a península. Ele tinha empregados, recebia presentes de sua abastada família e tinha pouco contato com o sofrimento na ilha. Quando soube que um homem havia morrido na colônia, Peter ficou chocado e comentou sobre isso com Kitty.

“Isso não é novidade”, respondeu ela. “Quase todos os dias morre alguém.”31

Em 30 de agosto de 1873, Peter acompanhou Napela durante a avaliação das necessidades das pessoas na colônia. O céu matinal estava nublado enquanto atravessavam a península em direção às cabanas e aos barracões onde as pessoas moravam. Napela parou em uma caverna e conversou com três homens, três mulheres e um pequeno garoto a respeito de suas rações. Peter ficou horrorizado. Por causa da doença, o rosto de alguns estava completamente desfigurado. Os dedos de outros haviam caído.

Depois, Napela e Peter encontraram uma mulher com uma perna extremamente inchada. Ela já estava em Molokai havia três anos e seu vestido e suas roupas de baixo estavam em farrapos. Napela lhe disse que, se fosse até a loja da colônia na segunda-feira, receberia roupas novas.

Em outubro, o conselho de saúde foi informado de que Napela estava dando comida para pessoas necessitadas na colônia, mas que não tinham autorização para receber as doações. Assim, ele foi demitido de seu emprego e recebeu ordens para deixar Kalaupapa. Napela imediatamente contou o ocorrido a Kitty. Pouco depois, Peter encontrou o casal e ambos estavam chorando. Kitty não andava muito bem, e Napela não queria deixá-la.32

Napela enviou uma petição ao conselho de saúde para que o deixassem ficar como cuidador de Kitty. “Jurei perante Deus que cuidaria de minha esposa na saúde e na doença, até que a morte nos separe”, escreveu ele. “Estou com 60 anos de idade e não tenho mais muitos anos de vida. Durante o tempo que me resta, quero estar com minha esposa.”

Sua solicitação foi aprovada pelo conselho.33


Em dezembro de 1873, após anos trabalhando a favor da Igreja e de Utah em Washington, D.C., George Q. Cannon foi designado como representante do território na câmara dos deputados dos Estados Unidos.34 George havia se preparado espiritualmente para aquele momento. Na noite anterior, ele se sentira fraco e desamparado, mas, após orar buscando auxílio, sentiu-se abençoado com alegria, consolo e força.

“Aqui estou entre homens que não têm compaixão nenhuma por mim”, escreveu ele em seu diário, “mas tenho um Amigo que é mais poderoso do que todos eles. Nisto me regozijo”.35

No começo da década de 1870, a opinião pública a respeito da Igreja nos Estados Unidos nunca havia sido tão desfavorável. O presidente Ulysses Grant estava determinado a acabar com a prática do casamento plural em Utah, tendo inclusive prometido que os trâmites para elevar o território à condição de estado ficariam suspensos até que a situação se resolvesse. Na primavera de 1874, o senador Luke Poland apresentou outro projeto de lei que tinha por objetivo fortalecer o Ato Morrill antibigamia, reivindicando maior controle sobre as cortes de Utah.36

Enquanto isso, Fanny e T. B. H. Stenhouse continuavam a publicar críticas contra a Igreja e a falar contra o casamento plural em todo o país.37 Da mesma forma, Ann Eliza Young, ex-esposa plural de Brigham Young, que o havia processado exigindo o divórcio, havia começado a fazer palestras denunciando a Igreja. Após uma apresentação em Washington, D.C., na qual Ann Eliza condenou a eleição de George Q. Cannon para o Congresso, o presidente Grant falou com ela e apoiou francamente suas opiniões.38

George jejuou e orou suplicando orientação a fim de tentar usar sua influência para barrar o Projeto de Lei Poland. Ele também buscou ajuda de alguns aliados. Recentemente, Thomas Kane e sua esposa, Elizabeth, haviam passado o inverno com Brigham Young em Utah. Influenciada por livros e reportagens jornalísticas hostis, Elizabeth chegou ao território crendo que encontraria mulheres oprimidas e desesperadas. Em vez disso, encontrou mulheres sinceras e gentis, que eram devotadas a sua religião. Pouco após a viagem, Elizabeth publicou um livro com suas impressões a respeito dos santos. Ela retratou os santos com justiça apesar de continuar se opondo ao casamento plural.

Graças, em parte, ao livro de Elizabeth, George persuadiu os outros deputados a amenizarem alguns trechos do Projeto de Lei Poland. Porém, seus esforços não impediram que o presidente Grant assinasse o documento em meados de junho.39

Durante aquele verão e o outono, William Carey, promotor dos Estados Unidos em Utah, tomou as medidas necessárias para processar santos conhecidos por praticar o casamento plural. George retornou para Utah nesse período e, em outubro, foi preso sob acusações relacionadas a seus múltiplos casamentos. Prevendo que mais santos seriam presos, os líderes da Igreja decidiram fazer um teste com um caso judicial para verificar a legalidade da lei Morrill antipoligamia.

Entrando em acordo com Carey, ficou combinado que ele condenaria um homem por poligamia a fim de que os advogados da Igreja pudessem apelar e levar o caso para uma instância superior. Em contrapartida, o promotor federal prometeu que não iria processar mais ninguém até que o caso teste fosse concluído. Os líderes da Igreja esperavam que a corte superior decidiria que a lei antipoligamia violava os direitos religiosos dos santos e que assim a condenação fosse revogada.

George Q. Cannon foi liberado sob fiança pouco após ser preso. Naquela noite, ele encontrou George e Amelia Reynolds passeando na rua ao sul da quadra do templo. George Reynolds era um membro britânico que servira como secretário de Brigham Young. Naquele verão, ele havia se casado com Amelia, sua primeira esposa plural. Conhecendo bem Reynolds, George Cannon recomendou-o como o candidato ideal para contestar a lei antipoligamia.

Reynolds concordou. Como o caso teste só poderia avançar se ele fosse condenado, Reynolds rapidamente forneceu uma lista de pessoas que poderiam testemunhar contra ele no tribunal. Pouco depois, ele foi preso por bigamia. O juiz então o liberou sob fiança e fixou uma data para seu julgamento.40

  1. “President Young Again in Court”, Salt Lake Daily Herald, 3 de janeiro de 1872, p. 2; “Give Him Time”, Salt Lake Daily Tribune and Utah Mining Gazette, 29 de novembro de 1871, p. 2; “Oh Dear!”, Salt Lake Daily Tribune and Utah Mining Gazette, 23 de dezembro de 1871, p. 2; “Home or Not at Home”, Salt Lake Daily Tribune and Utah Mining Gazette, 27 de dezembro de 1871, p. 2.

  2. Brigham Young and George A. Smith to Daniel H. Wells, Dec. 15, 1871, President’s Office Files, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja; Daniel H. Wells to Brigham Young, Dec. 22, 1871, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja.

  3. “Journal of Pres. Young and Party”, Dec. 26, 1871, in Historical Department, Office Journal, Dec. 23–28, 1871; Historical Department, Office Journal, Jan. 2, 1872; “Application for the Admission of President Young to Bail”, Salt Lake Daily Herald, 3 de janeiro de 1872, p. 3; “Brigham Young on Trial”, Salt Lake Daily Tribune and Utah Mining Gazette, 3 de janeiro de 1872, p. 2.

  4. “Brigham Young on Trial”, Salt Lake Daily Tribune and Utah Mining Gazette, 3 de janeiro de 1872, p. 2; Tullidge, History of Salt Lake City, pp. 553–557; Whitney, History of Utah, vol. 2, pp. 661–663; Historical Department, Office Journal, Jan. 2229, 1872; “Minutes of a Surprise Meeting”, Deseret Evening News, 24 de janeiro de 1872, p. 2.

  5. George Q. Cannon to Brigham Young, Mar. 16, 1872; Mar. 25, 1872, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja; “St. Brigham’s Counsel”, New York Herald, 16 de novembro de 1871, p. 5.

  6. George Q. Cannon to Brigham Young, Apr. 15, 1872, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja.

  7. “The Clinton-Engelbrecht Decision”, Deseret News, 8 de maio de 872, pp. 10–11. A citação foi alterada para facilitar a leitura. Onde se lia “of opinion” no original, o texto foi mudado para “of the opinion”.

  8. George Q. Cannon to Brigham Young, Apr. 15, 1872, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja; “By Telegraph”, Deseret Evening News, 16 de abril de 1872, p. 1; “Local and Other Matters”, Deseret Evening News, 16 de abril de 1872, p. 3; Historical Department, Office Journal, Apr. 25, 1872; “President Brigham Young”, Salt Lake Daily Herald, 26 de abril de 1872, p. 2.

  9. George Q. Cannon to Brigham Young, Apr. 15, 1872, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja.

  10. Cluff, Autobiografia, p. 132; H. H. Cluff, Carta para o editor, 7 de abril de 1872, em “Correspondence”, Deseret News, 8 de maio de 1872, p. 13; George Nebeker para Joseph F. Smith, 29 de abril de 1872, e H. H. Cluff, Carta para o editor, abril de 1872, em “From the Sandwich Islands”, Deseret News, 29 de maio de 1872, p. 9; “Elder George Nebeker”, Deseret News, 15 de novembro de 1871, p. 7; H. H. Cluff, “Sandwich Islands”, Deseret News, 4 de outubro de 1871, p. 9; “Napela, Jonathan (Ionatana) Hawaii”, entrada biográfica, site Journal of George Q. Cannon, churchhistorianspress.org; ver também Moffat, Woods e Walker, Gathering to La‘ie, pp. 29–47. Tópico: Havaí.

  11. William King para George Nebeker, 4 de dezembro de 1871, em “Correspondence”, Deseret News, 24 de janeiro de 1872, p. 3.

  12. H. H. Cluff, carta para o editor, abril de 1872, em “From the Sandwich Islands”, Deseret News, 29 de maio de 1872, p. 9.

  13. Cluff, Autobiografia, pp. 134–135; George Nebeker, Carta para o editor, 19 de agosto de 1872, em “Correspondence”, Deseret News, 25 de setembro de 1872, p. 10; H. H. Cluff, Carta para o editor, 12 de outubro de 1872, em “Correspondence”, Deseret News, 20 de novembro de 1872, p. 10; Woods, “Jonathan Napela”, pp. 32–33; Zambŭcka, High Chiefess, p. 25; “Kaleohano, H. K.”, Entrada biográfica, site Journal of George Q. Cannon, churchhistorianspress.org. Em fontes contemporâneas, H. K. Kaleohano é geralmente mencionado pelo sobrenome.

  14. Ver “Mrs. Stenhouse’s Book”, Salt Lake Daily Tribune and Utah Mining Gazette, 26 de fevereiro de 1872, p. 2; “Mrs. Stenhouse on Polygamy”, Salt Lake Daily Tribune and Utah Mining Gazette, 1º de março de 1872, p. 2; “Polygamy”, Chicago Tribune, 17 de março de 1872, p. 6; “Reviews of New Books”, New York Herald, 25 de março de 1872, p. 10; “Mormonism”, Alexandria Gazette, 28 de março de 1872, p. 1; “Giving Her Husband to a Second Wife”, New North-West, 13 de abril de 1872, p. 4; Walker, “Stenhouses and the Making of a Mormon Image”, pp. 59, 62; e Stenhouse, Exposé of Polygamy, pp. 13, 85–88, 96.

  15. Woman’s Exponent”, Woman’s Exponent, 1º de junho de 1872, vol. 1, p. 8; “‘Enslaved’ Women of Utah”, Woman’s Exponent, 1º de julho de 1872, vol. 1, p. 20; “Richards, Louisa Lula Greene”, Entrada biográfica, site First Fifty Years of Relief Society, churchhistorianspress.org.

  16. Lula Greene Richards para Zina S. Whitney, 20 de janeiro de 1893, Louisa Lula Greene Richards, Documentos, Biblioteca de História da Igreja; Richards, “How ‘The Exponent’ Was Started”, pp. 605–607; Smithfield Branch, Young Women’s Mutual Improvement Association Minutes and Records, 25 de maio de 1871, Biblioteca de História da Igreja; Campbell, Man Cannot Speak for Her, pp. 4–5, 9–12; “Prospectus of Woman’s Exponent, a Utah Ladies’ Journal”.

  17. Ver “Woman’s Exponent”, Woman’s Exponent, 1º de junho de 1872, vol. 1, p. 8. Tópico: Periódicos da Igreja.

  18. Woman’s Voice”, Woman’s Exponent, 15 de julho de 1872, vol. 1, p. 30.

  19. Christensen, Sagwitch, pp. 2, 23–26, 81. Tópico: Índios americanos.

  20. Christensen, Sagwitch, pp. 18–23, 26–40. Tópico: Sagwitch.

  21. Christensen, Sagwitch, pp. 41–58; 216–217, nota 26; Martineau, Diário, 1º de fevereiro de 1863, em Godfrey and Martineau-McCarty, Uncommon Pioneer, p. 132.

  22. Peter Maughan to Brigham Young, Feb. 4, 1863, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja; Christensen, Sagwitch, pp. 57–81; Madsen, Shoshoni Frontier, pp. 194–195.

  23. Christensen, Sagwitch, pp. 30, 71, 81; Parry, Entrevista, pp. 8, 17.

  24. Hill, “Indian Vision”, vol. 12, p. 11; Hill, “My First Day’s Work”, vol. 10, p. 309; Christensen, Sagwitch, pp. 84–87; Parry, Entrevista, p. 14.

  25. Hill, “George Washington Hill”; Hill, “My First Day’s Work”, vol. 10, p. 309; ver também Christensen, Sagwitch, pp. 59, 85, 88; e Parry, Entrevista, pp. 8–10, 14.

  26. Hill, “George Washington Hill”; ver também Christensen, Sagwitch, pp. 88–89.

  27. Hill, “My First Day’s Work”, vol. 10, p. 309; Hill, “George Washington Hill”; George Washington Hill to Brigham Young, May 6, 1873, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja; Hill, “Brief Acct”, 1.

  28. George Washington Hill to Brigham Young, May 6, 1873, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja. A citação foi editada para aumentar a clareza; “nor never spent” no original foi alterado para “nor ever spent”, e a palavra “I” foi adicionada.

  29. George Washington Hill to Dimick Huntington, May 7, 1873, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja.

  30. B. Morris Young to Brigham Young, July 6, 1873, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja; Woods, “Jonathan Napela”, pp. 34–35; Woods, Kalaupapa, pp. 18–22, 28–34, 37–40; Korn, News from Molokai, pp. 7; 16, nota 8; Kekuaokalani [Peter Kaeo] para Emma [Kaleleonalani], 9 de julho de 1873, em Korn, News from Molokai, p. 18; Jonathan Napela para E. O. Hall, 29 de abril de 1873; 1º de maio de 1873; 24 de julho de 1873; Jonathan Napela para S. G. Wilder, 10 de maio de 1873; 19 de maio de 1873, Board of Health Incoming Letters, Arquivo Estadual do Havaí. Tópico: Jonathan Napela.

  31. Kekuaokalani [Peter Kaeo] para Emma [Kaleleonalani], 4 de julho de 1873; 7 de julho de 1873; 9 de julho de 1873; 10 de julho de 1873, em Korn, News from Molokai, pp. 11, 12–13, 17–18, 19–20; Korn, News from Molokai, p. 7. A citação foi editada para facilitar a leitura; “was” no original foi alterado para “is”.

  32. Kekuaokalani [Peter Kaeo] para Emma [Kaleleonalani], 31 de agosto de 1873; 23 de outubro de 1873, em Korn, News from Molokai, pp. 80–81, 139; Korn, News from Molokai, p. 140, nota 1; Woods, Kalaupapa, p. 37.

  33. Jonathan Napela para E. O. Hall, 23 de outubro de 1873, Board of Health Incoming Letters, Arquivo Estadual do Havaí; Kekuaokalani [Peter Kaeo] para Emma [Kaleleonalani], 23 de outubro de 1873, em Korn, News from Molokai, p. 139; Woods, Kalaupapa, p. 39.

  34. Congressional Record, 1874, vol. 2, pp. 7–8; Bitton, George Q. Cannon, pp. 93–103, 117–125, 171–172, 184. Tópico: George Q. Cannon.

  35. George Q. Cannon, Journal, Dec. 1, 1873.

  36. George Q. Cannon to George Reynolds, Apr. 24, 1872, George Reynolds, Documentos, Brigham Young University; Congressional Record, 1874, vol. 2, pp. 3599–3600; George Q. Cannon, Journal, Feb. 5 and 6, 1873; May 5, 1874; Bitton, George Q. Cannon, pp. 187–188.

  37. Fanny Stenhouse, Tell It All, Hartford, CT: A. D. Worthington, 1874; T. B. H. Stenhouse, Rocky Mountain Saints, New York: D. Appleton, 1873; George Q. Cannon, Journal, Feb. 21, 1873; “Home Again”, Salt Lake Daily Tribune, 8 de maio de 1873, p. 2; “Anti-polygamy Lecture”, Salt Lake Daily Herald, 3 de julho de 1874, p. 3; “Lecture by Mrs. Stenhouse”, Salt Lake Daily Herald, 19 de novembro de 1874, p. 3.

  38. “Mrs. Young”, Boston Post, 2 de maio de 1874, p. 4; “Ann Eliza’s Life”, Daily Rocky Mountain News, 10 de dezembro de 1873, p. 4; “The Divorce Suit”, Salt Lake Daily Tribune, 1º de agosto de 1873, p. 2; “The Ann Eliza Divorce Case”, Salt Lake Daily Tribune, 23 de agosto de 1873, p. 3; Young, Wife No. 19, pp. 553–558; ver também “Mormonism”, National Republican, 14 de abril de 1874, p. 8.

  39. [Kane], Twelve Mormon Homes; Grow, Liberty to the Downtrodden, pp. 262–270; George Q. Cannon to Brigham Young, George A. Smith, and Daniel H. Wells, June 15, 1874, Arquivos do escritório de Brigham Young, Biblioteca de História da Igreja; George Q. Cannon, Journal, May 5–June 21, 1874, em especial a entrada June 19, 1874; An Act in relation to Courts and Judicial Officers in the Territory of Utah, 23 de junho de 1874, em Statutes at Large, 1875, vol. 18, pp. 253–256. Tópico: Thomas L. e Elizabeth Kane.

  40. “Got Home”, Salt Lake Daily Herald, 2 de julho de 1874, p. 3; “Third District Court”, Salt Lake Daily Herald, 22 de outubro de 1874, p. 3; Reynolds, Journal, Oct. 21–26, 1874; “Genuine Polygamy Indictment”, Deseret Evening News, 26 de outubro de 1874, p. 3; Wells, “Living Martyr”, p. 154; Whitney, History of Utah, vol. 3, pp. 45–47; Van Orden, Prisoner for Conscience’ Sake, pp. 37; 65, nota 11. Tópico: Legislação antipoligamia.