2014
Livres para Sempre, para Agirem por Si Mesmos
Novembro de 2014


Livres para Sempre, para Agirem por Si Mesmos

É o desejo de Deus que sejamos homens e mulheres livres, capazes de atingir nosso pleno potencial tanto material quanto espiritualmente.

A peça de William Shakespeare A Vida do Rei Henrique V inclui uma cena noturna no acampamento de soldados ingleses em Agincourt, pouco antes da batalha contra o exército francês. Sob uma luz fraca e parcialmente disfarçado, o rei Henrique caminha despercebido entre os seus soldados. Ele conversa com eles, tentando avaliar a confiança de suas tropas que estão em menor número e, por não perceberem quem ele é, são sinceros em seus comentários. Em uma parte da conversa, eles filosofam a respeito de quem tem a responsabilidade sobre o que acontece com os homens na batalha — o rei ou cada soldado individualmente.

Em determinado ponto, o rei Henrique declara: “Quanto a mim, em parte alguma poderia morrer tão satisfeito como na companhia do rei: sua causa é justa”.

Michael Williams retruca: “Isso é mais do que podemos saber”.

Seus companheiros concordam: “Sim, ou mais do que nos compete inquirir. Já é suficiente saber que somos súditos do rei. Se sua causa for injusta, nossa obediência nos limpará de toda culpa”.

Williams acrescenta: “Mas se for injusta, o rei terá de prestar contas muito sérias”.

Não é de se surpreender que o rei Henrique tenha discordado: “Todo dever dos súditos é para com o rei; mas a alma dos súditos só a eles mesmos pertence”.1

Shakespeare não tenta resolver esse debate na peça e, de um modo ou de outro, é um debate que continua até os dias atuais — de quem é a responsabilidade pelo que acontece em nossa vida?

Quando as coisas ficam ruins, há uma tendência de culpar outras pessoas ou até mesmo a Deus. Às vezes, surge um senso de direito e os indivíduos ou grupos tentam transferir para outras pessoas ou para o governo a responsabilidade pelo bem-estar próprio. Nos assuntos espirituais, algumas pessoas supõem que os homens e as mulheres não precisam se esforçar para atingir a retidão pessoal, porque Deus nos ama e nos salva “exatamente como somos”.

Mas Deus deseja que Seus filhos ajam de acordo com o arbítrio moral que Ele lhes deu “para que todo homem seja responsável por seus próprios pecados no dia do juízo”.2 É Seu plano e Sua vontade que desempenhemos o papel principal de tomar as decisões no drama de nossa própria vida. Deus não vai viver a nossa vida por nós nem vai nos controlar como se fôssemos Suas marionetes, como Lúcifer propôs certa vez. Tampouco Seus profetas aceitarão o papel de “mestre de marionetes” no lugar de Deus. Brigham Young declarou: “Não desejo que nenhum santo dos últimos dias neste mundo, ou no céu, esteja satisfeito com qualquer coisa que eu faça, a menos que o Espírito do Senhor Jesus Cristo, o espírito de revelação, faça com que se sintam satisfeitos. Desejo que saibam por eles mesmos e que entendam por eles mesmos”.3

Assim, Deus não nos salva “exatamente como somos”, primeiro porque “exatamente como somos”, somos impuros e “nenhuma coisa impura pode habitar (…) em sua presença; pois, no idioma de Adão, Homem de Santidade é seu nome e o nome de seu Unigênito é Filho do Homem [de Santidade]”.4 Segundo, Deus não vai agir para que nos tornemos alguém em quem não escolhemos, por nossas ações, nos tornar. Verdadeiramente Ele nos ama e porque Ele nos ama, não nos obriga nem nos abandona. Ao contrário, Ele nos ajuda e nos guia. De fato, a manifestação real do Seu amor são Seus mandamentos.

Devemos nos regozijar (e já nos regozijamos) com o plano ordenado por Deus que nos permite fazer nossas próprias escolhas para agirmos por nós mesmos e vivenciar as consequências ou como as escrituras expressam: “[provar] o amargo para saber apreciar o bom”.5 Somos eternamente gratos pela Expiação do Salvador ter sobrepujado o pecado original para que possamos nascer neste mundo e não sermos punidos pela transgressão de Adão.6 Tendo assim sido redimidos da Queda, começamos nossa vida inocentes perante Deus e “[tornarmo-nos] livres para sempre, distinguindo o bem do mal; para [agirmos] por [nós] mesmos e não para [recebermos] a ação”.7 Podemos escolher nos tornar o que desejamos e, com a ajuda de Deus, até mesmo ser como Ele é.8

O evangelho de Jesus Cristo abre o caminho para o que podemos nos tornar. Por meio da Expiação de Jesus Cristo e de Sua graça, nossos fracassos em viver a lei celestial perfeita e consistentemente na mortalidade podem ser apagados e podemos desenvolver um caráter semelhante ao de Cristo. A justiça, no entanto, exige que nada disso aconteça sem nosso consentimento e sem nossa participação. Sempre foi assim. Nossa própria presença na Terra como seres físicos é consequência de uma escolha que cada um de nós fez de participar do plano do nosso Pai.9 Assim, a salvação certamente não é o resultado de uma vontade divina, mas também não é algo que acontece somente por vontade divina.10

A justiça é um atributo essencial de Deus. Podemos ter fé em Deus porque Ele é perfeitamente confiável. As escrituras nos ensinam que “Deus não anda por veredas tortuosas nem se volta para a direita ou para a esquerda nem se desvia daquilo que disse; portanto suas veredas são retas e seu caminho é um círculo eterno”11 e que “Deus não faz acepção de pessoas”.12 Contamos com o atributo divino da justiça para ter fé, confiança e esperança.

Mas, como consequência de ser perfeitamente justo, existem algumas coisas que Deus não pode fazer. Ele não pode ser arbitrário em salvar alguns e banir outros. Ele “não [pode] encarar o pecado com o mínimo grau de tolerância”.13 Ele não pode permitir que a misericórdia roube a justiça.14

É uma evidência convincente de Sua Justiça o fato de Deus ter criado o princípio da misericórdia, que acompanha a justiça. É por Ele ser justo que planejou os meios para que a misericórdia desempenhasse seu papel indispensável em nosso destino eterno. Portanto, agora “a justiça exerce todos os seus direitos e a misericórdia também reclama tudo quanto lhe pertence”.15

Sabemos que são “os sofrimentos e a morte daquele que não cometeu pecado, em quem [o Pai rejubilou]; (…) o sangue de [Seu] Filho, que foi derramado”16 que satisfaz as demandas da justiça, estende a misericórdia e nos redime.17 Mesmo assim, “de acordo com a justiça, o plano de redenção não poderia ser realizado senão em face do arrependimento”.18 É a exigência e a oportunidade do arrependimento que permitem que a misericórdia desempenhe seu papel sem destruir a justiça.

Cristo não morreu para salvar indiscriminadamente, mas para oferecer o arrependimento. Confiamos “plenamente nos méritos daquele que é poderoso para salvar”19 no processo do arrependimento, contudo, arrepender-se é uma mudança voluntária. Assim, fazer com que o arrependimento seja uma condição para receber o dom da graça, permite-nos manter a responsabilidade por nós mesmos. O arrependimento respeita e apoia nosso arbítrio moral: “E assim a misericórdia pode satisfazer as exigências da justiça e envolve-os nos braços da segurança, enquanto que aquele que não exerce fé para o arrependimento está exposto às exigências de toda a lei da justiça; portanto, apenas para o que possui fé para o arrependimento tem efeito o grande e eterno plano de redenção”.20

Não compreender a justiça e a misericórdia de Deus é uma coisa; negar a existência ou a supremacia de Deus é outra, mas ambas vão resultar em perda — às vezes significativa — de nosso pleno potencial divino. Um Deus que não faz exigências é o equivalente funcional a um Deus que não existe. Um mundo sem Deus, o Deus vivo que estabelece as leis morais para governar e aperfeiçoar Seus filhos, é também um mundo sem verdade e sem justiça absolutas. É um mundo onde o relativismo moral reina com supremacia.

Relativismo significa que cada pessoa é sua autoridade máxima. Evidentemente, não apenas aqueles que negam a Deus acreditam nessa filosofia. Algumas pessoas que acreditam em Deus ainda acreditam que elas decidem individualmente o que é certo e o que é errado. Um jovem adulto expressou desta maneira: “Não acho que posso dizer que o hinduísmo ou o catolicismo estão errados ou que ser episcopal seja errado — acho que isso depende apenas do que você acredita. (…) Não acho que exista um certo e um errado”.21 Outro, quando perguntado a respeito da base para suas crenças religiosas, respondeu: “Acredito em mim mesmo — se resume a isso. Como poderia haver autoridade para o que você acredita?”22

Para aqueles que acreditam que qualquer coisa ou tudo pode ser verdade, a declaração de verdade objetiva, fixa e universal pode parecer uma coerção — “Eu não deveria ser forçado a acreditar que algo que eu não goste seja verdade”. Mas isso não muda a realidade. Ficar ressentido com a lei da gravidade não vai fazer com que uma pessoa não caia, se pular de um precipício. Isso vale também para a lei e a justiça eternas. A liberdade não vem da resistência a essas leis, mas da sua aplicação. Isso é fundamental para o próprio poder de Deus. Se não fosse pela realidade das verdades fixas e imutáveis, o dom do arbítrio não teria sentido, uma vez que não poderíamos prever e pretender as consequências de nossas ações. Conforme Leí expressou: “E se disserdes que não há lei, direis também que não há pecado. E se disserdes que não há pecado, direis também que não há retidão. E não havendo retidão, não há felicidade. E não havendo retidão nem felicidade, não haverá castigo nem miséria. E se estas coisas não existem, não existe Deus. E se não existe Deus, nós também não existimos nem a Terra; pois não poderia ter havido criação nem para agir nem para receber a ação; portanto, todas as coisas inevitavelmente teriam desaparecido”.23

Tanto em questão temporal quanto espiritual, a oportunidade de assumir a responsabilidade pessoal é um dom de Deus sem o qual não podemos atingir nosso pleno potencial como filhas e filhos de Deus. A responsabilidade pessoal se torna tanto um direito quanto um dever que precisamos defender constantemente; ela está sob ataque desde antes da Criação. Temos que defender a responsabilidade contra pessoas e programas que (às vezes, com a melhor das intenções) nos tornam dependentes. E devemos defendê-la contra nossa própria inclinação de evitar o trabalho que é exigido para cultivar talentos, habilidades e um caráter cristão.

Conta-se a história de um homem que simplesmente não trabalhava. Ele queria que cuidassem dele em todas as suas necessidades. Em sua maneira de pensar, a Igreja ou o governo, ou ambos, deviam a ele o seu sustento porque ele havia pago seus impostos e seu dízimo. Ele não tinha nada para comer, mas se recusava a trabalhar para cuidar de si mesmo. Em meio ao desespero e ao desgosto, aqueles que haviam tentado ajudá-lo decidiram que, já que ele não levantaria um dedo para se sustentar, eles podiam simplesmente levá-lo para o cemitério e deixá-lo morrer. No caminho para o cemitério, um homem disse: “Não podemos fazer isso. Tenho um pouco de milho que vou dar a ele”.

Eles, então, explicaram isso ao homem que não queria trabalhar e ele perguntou: “Ele já tirou as palhas do milho?”

Eles responderam: “Não”.

“Bem”, disse ele, “prossigam para o cemitério”.

É o desejo de Deus que sejamos homens e mulheres livres, capazes de atingir nosso pleno potencial tanto material quanto espiritualmente, para que sejamos livres das limitações humilhantes da pobreza e do cativeiro do pecado, que possamos desfrutar o respeito próprio e a independência, para que estejamos preparados em todas as coisas para nos unirmos a Ele em Seu reino celestial.

Não acredito na ideia errônea de que podemos atingir esse potencial apenas por nossos esforços, sem a ajuda essencial e constante Dele. “Sabemos que é pela graça que somos salvos, depois de tudo o que pudermos fazer.”24 E não precisamos alcançar um nível mínimo de capacidade ou bondade antes de receber a ajuda de Deus — podemos receber auxílio a cada hora todos os dias, não importa onde estejamos no caminho da obediência. Mas, sei que mais do que desejar Sua ajuda, devemos nos esforçar, arrepender-nos e escolher a Deus para que Ele possa agir em nossa vida em consistência com a justiça e com o arbítrio moral. Minha súplica é que simplesmente assumamos a responsabilidade e trabalhemos para que Deus possa nos ajudar.

Presto testemunho que Deus, o Pai, vive, que Seu Filho, Jesus Cristo, é nosso Redentor e que o Espírito Santo está presente conosco. O desejo que Eles têm de nos ajudar é inquestionável, e a capacidade que têm de fazê-lo é infinita. Que possamos “[despertar] e [levantar] do pó, (…) para que se cumpram os convênios que o Pai Eterno fez [conosco]”.25 Em nome de Jesus Cristo. Amém.