2002
Uma Perspectiva SUD de Maomé
Junho de 2002


Uma Perspectiva SUD de Maomé

Analisar Maomé do ponto de vista do evangelho restaurado proporciona maior conhecimento do amor do Pai Celestial por Seus filhos em todas as nações.

Há alguns anos recebi uma ligação de dois membros da Igreja nos Estados Unidos que haviam feito amizade com um vizinho muçulmano vindo do Paquistão. Quando contaram a ele a história da Primeira Visão de Joseph Smith, sua reação surpreendeu-os. Depois de declarar que os muçulmanos não aceitam profetas após Maomé, comentou que a história de Joseph Smith possuía similaridades com a de Maomé. Disse ele: “Acreditamos que Maomé encontrou um mensageiro divino que o informou de seu novo chamado como profeta. Ele recebeu revelações de uma nova escritura que continha a palavra de Deus para a humanidade e formou uma comunidade com as pessoas que nele acreditavam e que se tornou uma religião mundial de grande importância”. Por terem pouco conhecimento a respeito dos muçulmanos e do Islã* ou a respeito de Maomé, os membros não souberam o que dizer.

Os assuntos levantados nessa experiência insinuam uma questão mais ampla que é relevante para todos os santos dos últimos dias, devido à presença global da Igreja e das sociedades cada vez mais pluralistas em que todos vivemos: Qual é a atitude adequada dos santos dos últimos dias no que se refere às reivindicações de outras religiões de profetas, escrituras, visões e milagres divinamente inspirados? O comentário a seguir talvez ajude. Ele se baseia em novas idéias do evangelho que adquiri com o passar dos anos enquanto estudava e vivia em sociedades muçulmanas. Analisar o papel que Maomé desempenhou na história religiosa sob a perspectiva do evangelho restaurado proporciona grande compreensão de um dos líderes espirituais mais influentes da história. Ajuda-nos a apreciar o amor do Pai Celestial por Seus filhos em todas as nações e nos dá princípios que nos guiam na edificação de relações positivas com amigos e vizinhos de outras religiões.

Considerações a Respeito Dos Relacionamentos Inter-religiosos

O Presidente Gordon B. Hinckley vem, com consistência, incentivando o diálogo e o respeito mútuo nos relacionamentos inter-religiosos. Ele tem admoestado os membros da Igreja a “cultivarem um espírito de gratidão confirmadora” em relação a crenças religiosas, políticas e filosóficas divergentes, acrescentando que “de forma alguma temos que comprometer as coisas em que acreditamos” no processo. Ele deu o seguinte conselho: “Respeitem as opiniões e os sentimentos das outras pessoas. Reconheçam as virtudes que elas possuem; não olhem para seus erros. Procurem nelas seus pontos fortes e qualidades e vocês encontrarão força e virtudes que os ajudarão em sua própria vida”.1

A ênfase do Presidente Hinckley de edificarmos uma compreensão de outras religiões é baseada nos princípios fundamentais do evangelho — humildade, caridade, respeito pela verdade eterna e reconhecimento do amor de Deus por todos — ensinados por Jesus Cristo e por profetas antigos e modernos. O Salvador repetidamente afirmava a preocupação sem limites do Pai Celestial pelo bem-estar de cada um de Seus filhos e filhas, como na parábola da ovelha perdida (ver Lucas 15). Na parábola do bom Samaritano, Ele ensinou que uma das chaves do verdadeiro discipulado é de tratar os outros com bondade e compaixão a despeito de diferenças políticas, raciais ou religiosas (ver Lucas 10:25–37). Ele denunciou a intolerância e a rivalidade entre grupos religiosos e a tendência de exaltar as próprias virtudes e de condenar a posição espiritual de outros. Dirigindo a parábola àqueles que “confiavam em si mesmos, crendo que eram justos e desprezavam os outros”, Jesus condenou o orgulho do fariseu que orava “Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens” e elogiou a humildade do publicano que implorou: “Ó Deus, tem piedade de mim, pecador”. (Ver Lucas 18:9–14.)

O Livro de Mórmon ensina que o Pai Celestial “se lembra de todos os povos, estejam na terra em que estiverem; (…) E suas entranhas de misericórdia cobrem toda a Terra”. (Alma 26:37; ver também 1 Néfi 1:14.) Devido ao amor que sente por todos os Seus filhos, o Senhor proveu a luz espiritual para guiar e enriquecer a vida deles. O Élder Orson F. Whitney (1855–1931) do Quórum dos Doze Apóstolos observou que Deus “não usa apenas o povo do convênio, mas também outros povos, para executar uma obra estupenda, magnífica e árdua demais para um punhado de santos levarem a cabo sozinhos”.2

O Élder B. H. Roberts (1857–1933) dos Setenta também falou a respeito dessa doutrina: “Apesar de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias ter sido estabelecida para instruir os homens e ser um dos instrumentos de Deus para tornar a verdade conhecida, Ele não Se restringe a essa instituição para tais propósitos, nem em tempo nem em lugar. Deus levanta homens sábios e profetas em todos os lugares entre os filhos dos homens, que falam seu idioma e têm a mesma nacionalidade, dirigindo-se a eles por meios que conseguem compreender. (…) Todos os grandes mestres são servos de Deus; em todas as nações e em todas as eras. Eles são homens inspirados, indicados para instruir os filhos de Deus de acordo com as condições em que vivem”.3

O Profeta Joseph Smith (1805–1844) discorria, com freqüência, a respeito do tema da universalidade do amor de Deus e a necessidade de ser receptivo a todas as fontes da divina luz e conhecimento. “Um dos grandes princípios fundamentais do ‘Mormonismo’”, dizia ele, “é receber a verdade, seja qual for sua origem.”4O Profeta exortou os membros da Igreja a “reunir todos os princípios bons e verdadeiros que existem no mundo [e a entesourá-los].”5

Os líderes da Igreja têm incentivado os membros continuamente a promoverem relacionamentos positivos com pessoas de outras religiões reconhecendo a verdade espiritual que outros possuem, enfatizando as semelhanças na crença e no estilo de vida. Os líderes da Igreja nos ensinam a discordar de forma cortês. O Élder Bruce R. McConkie (1915–1985) do Quórum dos Doze Apóstolos falou a respeito desse tema aos santos dos últimos dias e membros de outras religiões durante uma conferência de área no Taiti: “Mantenham tudo o que é bom e verdadeiro. Não abandonem princípio algum que seja sábio ou adequado. Não renunciem a qualquer modelo do passado que seja bom, reto ou verdadeiro. Cremos em todas as verdades encontradas em todas as igrejas do mundo, mas também dizemos a todos os homens: Venham e recebam a luz e verdade adicionais que Deus restaurou em nossos dias. Quanto mais verdade tivermos, maior será nossa alegria aqui e agora; quanto mais verdade recebermos, maior será nossa recompensa na eternidade”.6

Durante a conferência geral de outubro de 1991, o Presidente Howard W. Hunter, na época Presidente do Quórum dos Doze Apóstolos, disse: “Como membros da Igreja de Jesus Cristo, procuramos reunir toda verdade. Procuramos ampliar o círculo de amor e compreensão entre todos os povos da Terra. Empenhamo-nos, assim, a estabelecer a paz e a felicidade, não somente para cristãos, mas para toda a humanidade”.7

De forma semelhante, o Élder Russell M. Nelson, do Quórum dos Doze Apóstolos citou um pronunciamento da Primeira Presidência e do Quórum dos Doze Apóstolos em outubro de 1992, conclamando “todas as pessoas, em todos os lugares, a adotarem os ideais tradicionalmente consagrados de tolerância e respeito mútuo. Acreditamos sinceramente que ao tratarmos uns aos outros com consideração e compaixão, descobriremos que podemos todos coexistir em paz, apesar de nossas mais profundas diferenças.”8Ele então disse: “Esse pronunciamento é a confirmação, nos dias atuais, do pedido de tolerância feito anteriormente pelo Profeta Joseph. Respondamos em uníssono. Unamo-nos na intolerância à transgressão, mas sejamos tolerantes com o próximo a respeito das diferenças que eles consideram sagradas. Nossos amados irmãos de todo o mundo são todos filhos de Deus”.

O Interesse Dos Santos Dos Últimos Dias Em Maomé

Um dos exemplos dignos de nota do compromisso dos santos dos últimos dias de entesourar princípios verdadeiros, é a admiração que os líderes da Igreja vêm expressando através dos anos, pelas contribuições de Maomé.

Retornando ao ano de 1855, época em que a literatura cristã em geral, ridicularizava Maomé, os Élderes George A. Smith (1817–1875) e Parley P. Pratt (1807–1857) do Quórum dos Doze Apóstolos proferiram extensos sermões demonstrando uma compreensão precisa e equilibrada da história islâmica e fazendo grandes elogios à liderança de Maomé. O Élder Smith observou que Maomé “descendia de Abraão e sem dúvida foi levantado por Deus propositadamente” para pregar contra a idolatria. Ele simpatizava com o empenho dos muçulmanos que, como os santos dos últimos dias, acham difícil “conseguir que uma história honesta” seja escrita a respeito deles. Depois o Élder Pratt expressou sua admiração pelos ensinamentos de Maomé, assegurando que “no geral, (…) [os muçulmanos] têm moral mais elevado e instituições melhores do que muitas nações cristãs.”9

A apreciação dos santos dos últimos dias pelo papel de Maomé na história pode ser também encontrada na declaração da Primeira Presidência em 1978 referente ao amor de Deus por toda a humanidade. Essa declaração menciona especificamente Maomé como “um dos grandes líderes religiosos do mundo” que recebeu “uma porção da luz de Deus” e afirma que “verdades morais foram dadas [a esses líderes] por Deus para iluminar nações inteiras e a levar as pessoas a um nível de entendimento mais elevado.”10

Nos últimos anos, o respeito pelo legado espiritual de Maomé e pelos valores religiosos da comunidade islâmica, têm levado a um contato e a uma cooperação crescentes entre os santos dos últimos dias e os muçulmanos de todo o mundo. Essa cooperação é devida em parte à presença de congregações de santos dos últimos dias em áreas como a costa leste do Mediterrâneo, a África do Norte, o Golfo Persa e o Sudeste da Ásia. A Igreja respeita as leis e as tradições islâmicas que proíbem a conversão de muçulmanos a outras religiões, adotando a norma de não-proselitismo nos países islâmicos do Oriente Médio.

Apesar disso há muitos exemplos de diálogo e de cooperação, incluindo visitas de autoridades muçulmanas à sede da Igreja em Salt Lake City; a utilização que os muçulmanos fazem das dependências de enlatamento de conservas para a produção de produtos alimentares halal (ritualmente limpos); a ajuda humanitária e de socorro às vítimas de desastres enviadas predominantemente às áreas muçulmanas, incluindo a Jordânia, Kosovo e Turquia; acordos acadêmicos feitos entre a Universidade Brigham Young e várias instituições educacionais e governamentais no mundo islâmico; a existência da Associação de Estudantes Muçulmanos na BYU; e uma crescente colaboração entre a Igreja e organizações islâmicas para proteger os valores tradicionais da família pelo mundo inteiro.11O início recente da Islamic Translation Series (Série de Traduções Islâmicas), co-patrocinada pela BYU e pela Igreja, resultou em uma cooperação significativa entre os oficiais muçulmanos e os líderes da Igreja. Um embaixador muçulmano junto às Nações Unidas predisse que essa série de traduções “terá um papel positivo na busca do Ocidente para uma melhor compreensão do Islã.”12

Esses exemplos de interação dos santos dos últimos dias com os muçulmanos, juntamente com o estabelecimento da Igreja em 1989 de dois grandes centros de intercâmbio educacional e cultural no Oriente Médio (Jerusalém e Amã), refletem o respeito que os líderes da Igreja têm demonstrado pelo Islã desde o início. Essas atividades representam uma prova clara do compromisso dos santos dos últimos dias de promover um maior entendimento do mundo muçulmano e testemunhar o papel emergente da Igreja em ajudar a sobrepujar as diferenças culturais que existiu historicamente entre os muçulmanos e os cristãos. Um ministro de gabinete do Egito, ciente das similaridades compartilhadas pelos muçulmanos e santos dos últimos dias, comentou certa vez com o Élder Howard W. Hunter do Quórum dos Doze Apóstolos que “se algum dia for construída uma ponte entre o cristianismo e o islamismo, ela deverá ser construída pela Igreja Mórmon”.13

A Vida de Maomé

Quem, então, foi Maomé e o que em sua vida e ensinamentos atraiu o interesse a admiração dos líderes da Igreja? Que força e virtudes podemos encontrar na experiência muçulmana que, conforme o Presidente Hinckley sugeriu, será útil em nossa vida espiritual?

Neste início do século XXI, o Islamismo é uma das maiores religiões do mundo e também uma das que cresce mais rapidamente. São mais de um bilhão de muçulmanos (quase um quinto da população mundial). Os muçulmanos vivem basicamente no Sudeste da Ásia, na Índia e no Norte da África, havendo um número significativo na Europa e na América do Norte. Algumas projeções indicam que o Islamismo se tornará a religião com o maior número de membros do mundo durante a metade deste novo século. As raízes desse movimento religioso dinâmico e mal-compreendido por algumas pessoas, remontam a 14 séculos desde o início humilde e trabalho fundador de Maomé, a quem os muçulmanos consideram ser o último de uma longa linha de profetas enviados por Deus para ensinar o islamismo ao mundo.

Maomé (“louvado”, em árabe) nasceu em 570 e.c.14em Meca, uma cidade próspera, centro do comércio das caravanas e da peregrinação religiosa no noroeste da península arábica. Tendo ficado órfão ainda muito pequeno, viveu na pobreza durante a juventude, trabalhando como pastor para sua família e vizinhos, uma ocupação que lhe proporcionou muito tempo e isolamento para refletir a respeito das questões mais profundas da vida. Maomé adquiriu uma boa reputação na comunidade como um juiz confiável e um pacificador, conforme indicado no relato a seguir:

“Em uma determinada época, os Quraish (a tribo de Maomé) decidiram reconstruir o Kaaba [santuário sagrado], para recolocar as pedras sobre os alicerces. Em um dos cantos eles começaram a colocar a pedra negra, mas não conseguiam decidir quem teria a honra de colocá-la no lugar. Eles teriam brigado violentamente se [Maomé] o jovem a quem todos admiravam e confiavam não tivesse se aproximado. Pediram-lhe (…) que resolvesse a disputa. Maomé mandou que abrissem um grande manto no chão e colocassem a pedra negra no meio. Eles o fizeram. Então, pediu a um homem de cada um dos clãs que participavam da disputa que segurasse uma extremidade do manto, Dessa forma todos partilharam da honra de transportar a pedra.”15

Aos 25 anos, Maomé casou-se com Khadija, 15 anos mais velha que ele e uma próspera mercadora de caravanas. Ela conhecia sua reputação de honestidade e trabalho árduo e fez a proposta de um casamento que foi bem-sucedido e feliz, sendo que tiveram quatro filhas e dois filhos. Durante os 15 anos seguintes, Maomé juntou-se a Khadija na direção dos negócios de família e na educação dos filhos. Durante esse período isolava-se com freqüência na solidão do deserto para orar, meditar e adorar. Estava insatisfeito com a corrupção, idolatria e iniqüidade social que afligia Meca e buscava uma verdade superior que traria paz, justiça e realização espiritual para ele e para seu povo.

Em 610 e.c., aos 40 anos de idade, sua busca e sua preparação espiritual atingiram o ápice. De acordo com a história islâmica, certa noite quando Maomé estava no Monte Hira, próximo à Meca, orando e meditando, o anjo Gabriel apareceu a ele para entregar-lhe uma mensagem de Deus ( Allah, em árabe).16O anjo ordenou a Maomé: “Leia: Em nome de teu Senhor que criou, criou o homem de um coágulo. Leia: Que teu Senhor é o Mais Generoso, que ensinou através da palavra, ensinou o homem o que ele não sabia.” (Al Corão 96:1–5)17

Durante um período de 22 anos, entre 610 e.c. e sua morte em 632, Maomé recebeu comunicações que ele dizia serem de Allah, por meio do anjo Gabriel e que ele decorava e recitava a seus discípulos. Essas recitações da mente e da vontade de Allah são conhecidas como o Al Corão (recitação) pelos muçulmanos. Contudo a pregação de Maomé contra a idolatria, politeísmo, infanticídio feminino e outras corrupções religiosas e sociais enfrentaram oposição acirrada em Meca. Sua mensagem foi rejeitada nesse período inicial em Meca e, ele e sua recém-criada comunidade de conversos, na maioria alguns familiares e bons amigos, eram evitados, perseguidos e mesmo torturados.

Então um grupo da cidade de Yathrib encontrou-se com Maomé, pedindo a ele que servisse como juiz nas desavenças que estavam arruinando sua cidade. Maomé viu nisso a oportunidade de aliviar o sofrimento de seus seguidores e concordou em deixar Meca. Primeiro enviou seus seguidores e depois ele próprio foi para a cidade que mais tarde seria conhecida como Madinat an-Nabi (Cidade do Profeta), ou simplesmente Medina. Essa emigração ( Hégira em árabe) de Meca para Medina ocorreu em 622 e.c. o ano comemorado como o ponto de partida do calendário muçulmano Hijri. Os muçulmanos viram na Hégira um momento decisivo na vida do profeta e na natureza da comunidade muçulmana. Maomé passou de um pregador rejeitado a um estadista, legislador, juiz, educador e líder militar. Em Medina, os muçulmanos tiveram a liberdade para estabelecer-se com segurança, desenvolver instituições para o governo e a educação e tornarem-se uma comunidade próspera, em contraste com sua posição de minoria religiosa perseguida em Meca.

Poucos anos após o Hégira, Maomé pôde retornar a Meca, onde seus ensinamentos foram adotados gradualmente. Hoje Meca é considerada pelos muçulmanos como o centro espiritual do islamismo e a mais santa das cidades, com Medina sendo a segunda e Jerusalém a terceira delas.

Em 632, na idade de 62 anos, Maomé morreu inesperadamente depois de uma febre fulminante. Sob todos os pontos de vista, Maomé foi extraordinariamente bem-sucedido, muito embora seu nome e realizações sejam assunto de controvérsia na civilização oriental. Durante a última metade do século XX, contudo, historiadores não-muçulmanos vêm sendo mais objetivos e positivos, reconhecendo as realizações de Maomé tanto no campo político como religioso, assegurando a ele um lugar entre os mais influentes personagens da história.

Ao contrário do estereótipo da civilização ocidental de Maomé como inimigo dos cristãos, fontes muçulmanas retratam-no como um homem de humildade inabalável, bondade, bom humor, generosidade e gostos simples. Embora sorrisse com freqüência, diz-se que raramente ria porque, como um hadice famoso (relato dos feitos e ditos de Maomé) declara: “Se vocês soubessem o que eu sei, chorariam muito e ririam pouco”. Seu humor complacente é evidente na história a seguir: “Certo dia, uma senhora idosa foi perguntar-lhe se velhas infelizes também iriam para o Paraíso. ‘Não’, respondeu ele, ‘não existem velhas no Paraíso!’ Então, olhando para seu rosto aflito, disse num sorriso: ‘Todas elas serão transformadas no Paraíso, pois lá, há apenas uma idade jovem para todos!’”

Ele dava conselhos sábios e práticos a seus seguidores. Quando um homem lhe perguntou se precisava amarrar o camelo, uma vez que ele confiava na ajuda e na proteção de Deus, Maomé replicou: “Primeiro amarre o animal e então confie em Deus”. Alguns registros indicam que a família de Maomé era pobre e passava fome com freqüência, só tendo condições de comprar pão seco ocasionalmente. Sua declaração faqri fakhri, “Minha pobreza é meu orgulho”, revela sua alegria nos prazeres simples e essa citação foi posteriormente adotada por muçulmanos ascetas. Ele gostava especialmente de crianças, permitindo que seus dois netinhos subissem em suas costas durante as orações. Um homem criticou-o, certa vez, por beijar o neto Hasan, dizendo: “Tenho 10 meninos, mas jamais beijei nenhum deles”. Ao que Maomé respondeu: “Aquele que não mostra misericórdia, não receberá misericórdia”.18

Em seu último discurso na mesquita em Medina, feito no dia de sua morte, Maomé demonstrou humildade e magnanimidade ao se despedir de sua comunidade depois de mais de 30 anos de sacrifícios em nome dela: “Se houver qualquer homem cuja honra eu tenha ferido, aqui estou para admiti-lo e receber a punição merecida. Se feri alguém fisicamente sem justificativa, aqui estou para pagar o preço. Se devo algo a alguém, eis aqui minha propriedade e essa pessoa pode tomar posse dela. (…) Ninguém deveria dizer: ‘Temo a animosidade e o rancor do Mensageiro de Deus’. Não tenho ressentimento por ninguém. Essas coisas são contrárias à minha natureza e temperamento. Eu as abomino”.19

Com essa visão em mente a respeito de Maomé, podemos entender porque os muçulmanos habitualmente abençoam e invocam seu nome em conversas e comemoram seu aniversário. Os muçulmanos devotos esforçam-se por seguir seu exemplo em todos os aspectos da vida: no modo de vestir, estilo de vestimenta, maneiras à mesa, rituais religiosos e benevolência para com outras pessoas.

Os Ensinamentos de Maomé

A vida islâmica gira em torno de cinco princípios básicos que são delineados em termos gerais no Al Corão e expostos nos ensinamentos e costumes ( sunna em árabe) de Maomé. Esses cinco pilares são o testemunho da fé, oração, doação de esmolas, jejum e peregrinação à Meca. Alguns exemplos dos ensinamentos de Maomé a respeito da caridade e do jejum, a seguir, ilustram sua forma de ensinar e seu papel central na vida muçulmana.

O princípio de se dar esmolas foi estabelecido para se cuidar do pobre e de desenvolver a empatia entre seus seguidores. O Al Corão declara que a caridade e a compaixão, não a observância mecânica de rituais, definem a dignidade de alguém à vista de Deus. (2:177) Os dizeres de Maomé ensinam claramente a prática da caridade:

“Ninguém [verdadeiramente] crê até que deseje para seu irmão o que deseja para si próprio.”

“Cada pessoa, precisa, de coração, realizar um ato caridoso todos os dias quando o sol nasce; ser justo com duas pessoas é caridade; ajudar um homem com sua montaria, erguendo-o para montar no animal ou ajudá-lo a erguer seus pertences é caridade; é uma boa palavra, a caridade; cada passo que alguém dá a caminho das orações é caridade; e retirar coisas perigosas da estrada é caridade.”

“A caridade extingue o pecado como a água extingue o fogo.”

“Sorrir para outra pessoa é um ato de caridade.”

“Aquele que dorme de estômago cheio sabendo que seu vizinho está faminto [não crê].”20

A idéia que os muçulmanos fazem do jejum tem um propósito duplo: levar a efeito um estado de humildade, entregando a alma a Deus e de promover a compaixão e o cuidado do pobre na comunidade. Assim, fazer jejum e dar esmolas andam de mãos dadas: negar a si mesmo não pode ser completo sem dar de si mesmo.

Lembrei-me desse princípio entre os muçulmanos e da profunda influência de Maomé em sua vida no período em que residi no Cairo, Egito, durante o mês de jejum, o Ramadã.21Minha família e eu fomos convidados por um amigo muçulmano, Nabil, a participar da refeição noturna quando a família quebrava o jejum. Ao entrar em seu apartamento simples em um dos bairros mais pobres do Cairo, notei que um dos cômodos era ocupado por inúmeras mulheres e crianças. Estavam todas sentadas no chão com alimento espalhado diante delas por sobre uma toalha, serenamente aguardando o chamado à oração que marca o final do jejum a cada dia. Quando perguntei a Nabil se eram seus parentes, ele respondeu: “Não, não conheço nenhuma delas. Temos o hábito de convidar estranhos da rua que não têm condições de se alimentar bem e dividir nossa refeição de Ramadã com eles. Fazemos isso porque era um dos costumes de nosso profeta, Maomé”.

Fiquei profundamente emocionado com o altruísmo do meu amigo muçulmano e da compaixão pelo pobre, e senti-me humilde por seu bom exemplo da prática de um princípio que aprendi na Bíblia anos antes, mas que raramente seguia: “(…) Quando deres um jantar, ou uma ceia, não chames os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem vizinhos ricos; (…) Mas, quando fizeres convite, chama os pobres, aleijados, mancos e cegos. E serás bem-aventurado; porque eles não têm com que to recompensar (…)”. (Lucas 14:12–14)

Uma Perspectiva Dos Santos Dos Últimos Dias

Como, então, os santos dos últimos dias consideram a comunidade muçulmana? A melhor abordagem seria reconhecer as verdades e valores que compartilhamos com nossos irmãos e irmãs muçulmanos, enquanto que educadamente reconhecemos as diferenças teológicas existentes. Certamente os santos dos últimos dias não concordam com os ensinamentos islâmicos que negam a divindade de Jesus Cristo, a necessidade de profetas modernos ou o princípio de progresso eterno. Mas ao sermos humildes e abertos à luz espiritual onde quer que seja encontrada, nos beneficiaremos com os ensinamentos dos muçulmanos e confirmaremos as similaridades como fé, oração, jejum, arrependimento, compaixão, recato e famílias sólidas, como pedras angulares da espiritualidade individual e da vida comunitária.22

Em uma reunião com dignitários muçulmanos, o Élder Neal A. Maxwell do Quórum dos Doze Apóstolos indicou a herança espiritual comum a mórmons e muçulmanos. Depois de citar um verso do Al Corão, ele observou: “Deus é a fonte de luz no céu e na Terra. Compartilhamos essa crença com vocês. Resistimos ao mundo secular. Acreditamos da mesma forma que vocês que a vida tem significado e propósito. (….) Reverenciamos a instituição da família. (…) Respeito mútuo, amizade e amor são coisas preciosas no mundo hoje. Sentimos essas emoções por nossos irmãos e irmãs muçulmanos. O amor não precisa de um visto de entrada. Ele atravessa todas as fronteiras e une gerações e culturas”.23

O Profeta Joseph Smith, em um de seus pronunciamentos mais eloqüentes a respeito de tolerância e compaixão, incentivou os santos a expandirem sua visão da família humana, para verem as pessoas de outras religiões e culturas como nosso Pai Celestial faz e não de acordo com os “sentimentos mesquinhos que influenciam os filhos dos homens”. Ele ensinou que o Pai levará as complexas circunstâncias pessoais, políticas e sociais em consideração no último dia e fará o julgamento final com base em uma perspectiva divina e misericordiosa que ultrapassa nosso limitado entendimento humano:

“Enquanto, porém, uma parte da raça humana julga e condena a outra sem piedade, o grande Pai do universo vela por toda a família humana com cuidado e consideração paternais; e sem nenhum desses sentimentos mesquinhos que influenciam os filhos dos homens, ‘faz com que seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos’. (Mateus 5:45) Ele possui o timão do julgamento em suas mãos; é um Legislador sábio, e julgará a todos os homens, não de acordo com as estreitas e limitadas noções humanas, mas ‘segundo as obras que realizaram na carne, sejam elas boas ou más’ quer essas obras tenham sido realizadas na Inglaterra, América, Espanha, Turquia ou Índia. Deus julgará o homem ‘pelo que tem e não pelo que não tem’ e os que viveram sem lei, serão julgados sem lei; os que tiveram uma lei, serão julgados por essa lei. Não há razão para duvidar da sabedoria e do julgamento do Grande Jeová. Ele conferirá julgamento ou misericórdia a todas as nações, de conformidade com os que merecem: suas maneiras de obter conhecimento, as leis por meio das quais se governaram, suas facilidades para obter informações corretas, segundo os inescrutáveis propósitos divinos com relação à família humana. E quando se manifestarem os propósitos de Deus e se descerrar a cortina do futuro, todos nós, finalmente, teremos que confessar que o Juiz de toda a Terra agiu com plena justiça.”24

Em resposta a questões envolvendo relações inter- religiosas na Igreja, sinto-me feliz em declarar que pertencemos a uma Igreja que confirma as verdades ensinadas por Maomé e outros grandes professores, reformadores e fundadores religiosos. Reconhecemos a bondade refletida na vida das pessoas pertencentes a outras comunidades religiosas. Ao mesmo tempo que não comprometemos as verdades eternas do evangelho restaurado, evitamos um relacionamento antagonista com outras religiões. Ao contrário, de acordo com conselhos proféticos modernos, procuramos entesourar tudo o que seja virtuoso e louvável em outras religiões e a cultivar uma “atitude confirmadora” em relação a eles. Como santos dos últimos dias, podemos respeitar e nos beneficiarmos com a luz espiritual encontrada em outras religiões, ao mesmo tempo que procuramos a medida adicional da verdade eterna prometida por revelações.

*Os muçulmanos são seguidores da religião islâmica (que significa “submissão a Deus”). As escrituras do islamismo são encontradas no Qur’an (Al Corão).

James A. Toronto é um professor adjunto de estudos islâmicos e religião comparada na Universidade Brigham Young.

Notas

  1. Citado em Sheri L. Dew, Go Forward with Faith: The Biography of Gordon B. Hinckley (1996), pp. 536, 576.

  2. Conference Report, abril de 1921, pp. 32–33.

  3. Defense of the Faith and the Saints, 2 volumes (1907), 1:512–513.

  4. Ensinamentos do Profeta Joseph Smith, sel. Joseph Fielding Smith (1976), p. 305.

  5. Ensinamentos do Profeta Joseph Smith, p. 309

  6. Citado em Russell M. Nelson, “‘Ensinai-vos Tolerância e Amor’”, A Liahona, julho de 1994, p. 70.

  7. “O Evangelho — Uma Fé Global”, A Liahona, janeiro de 1992, p. 20

  8. A Liahona, julho de 1994, p. 80; grifo no original.

  9. Ver Deseret News, 10 de outubro de 1855, pp. 242, 245.

  10. Declaração da Primeira Presidência, 15 de fevereiro de 1978.

  11. As atividades que tratam da família são coordenadas pelo Centro Mundial de História da Família, na Universidade Brigham Young. O centro patrocina uma coalizão inter-religiosa, o Congresso Mundial de Famílias, que inclui representantes de muitos países muçulmanos.

  12. Ver Michael R. Leonard, “Islamic diplomats hosted in New York”, Church News, 3 de abril de 1999, p. 6.

  13. Howard W. Hunter, “‘All Are Alike unto God’”, Ensign, junho de 1979, p. 74.

  14. e.c. significa Era Comum, equivalente no tempo à era cristã (D.C.)

  15. Iqbal Ahmad Azami, Muhammad the Beloved Prophet (1990), pp. 14–15. O Kaaba é o local sagrado em Meca que os muçulmanos acreditam ter sido construído por Abraão e seu filho Ismael.

  16. Allah é a contração de al-ilah, que significa Ao Deus”. É a palavra usada por todos os árabes muçulmanos e cristãos para se referirem a Deus e é também usado nas escrituras da Igreja e empregada por todo o mundo árabe.

  17. A. J. Arberry, tradutor, The Koran Interpreted (1955), p. 344.

  18. Essas anedotas a respeito da personalidade de Maomé são encontradas em Annemarie Schimmel, And Muhammad Is His Messenger: The Veneration of the Prophet in Islamic Piety (1985), pp. 46–49.

  19. Ja`far Qasimi, “The Life of the Prophet”, em Islamic Spirituality, editada por Seyyed Hossein Nasr (1991), p. 92.

  20. Os primeiros três hadice foram extraídos de al-Arba `in al-Nawawiyya [Nawawi’s Forty Hadith] (1976), 56, 88, 98. Os dois últimos hadice foram registrados pelo autor durante conversas com amigos e conhecidos muçulmanos.

  21. Durante o Ramadã, os muçulmanos jejuam desde o amanhecer até o pôr-do-sol durante 30 dias seguidos, abstendo-se de alimento, bebida, fumo e outras gratificações físicas.

  22. Para mais informações a respeito do mundo muçulmano ou de similaridades e diferenças doutrinárias, ver Daniel C. Peterson, Abraham Divided: An LDS Perspective on the Middle East (1995), ou James A. Toronto, “Islam”, em Spencer J. Palmer e Roger R. Keller, Religions of the World: A Latter-day Saint View (1997), 213–241.

  23. Church News, 3 de abril de 1999, p. 6, e as observações e notas pessoais do autor.

  24. Ensinamentos do Profeta Joseph Smith, p. 213.