1990–1999
O Guardador de Meu Irmão
April 1990


O Guardador de Meu Irmão

“Nosso serviço ao próximo poderá não ser… dramático, mas nós podemos alentar o espírito humano, agasalhar o que sente frio, confortar o coração atribulado e elevar a novas alturas almas preciosas.”

A Bíblia Sagrada é uma inspiração para mim. Este sagrado livro tem inspirado a mente humana e motivado leitores a viver os mandamentos de Deus e a amarem-se uns aos outros. É impresso em maior número, traduzido para mais idiomas e tem tocado mais corações humanos do que qualquer outra obra.

Particularmente, gosto muito de ler, no livro de Gênesis, a descrição da criação do mundo. Ponderai a força desta declaração culminante: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou. E Deus os abençoou.” (Gênesis 1:27–28.)

A alegria transforma-se em tristeza quando lemos a respeito da trágica morte de Abel pelas mãos de seu irmão Caim. Capítulos de conselhos, lições para a vida, orientação de Deus encontram-se num breve versículo: “E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei: sou eu guardador do meu irmão?” (Gênesis 4:9.)

Essas duas perguntas significativas são feitas e respondidas em temas ensinados pelas escrituras afora. Encontramos na vida de José e seus irmãos um desses exemplos. Certamente nos lembramos de que José era particularmente querido de seu pai Jacó, o que provocou amargura e ciúmes da parte de seus irmãos. Seguiu-se o plano de matá-lo, o que acabou levando José a ver-se numa cova sem alimento nem água para sobreviver. Passando ali uma caravana de mercadores, os irmãos de José resolveram vendê-lo, em vez de deixá-lo morrer. Vinte peças de prata livraram José da cova e o levaram à casa de Potifar, na terra do Egito. Ali José prosperou, pois “o Senhor estava com José”. (Gênesis 39:2.)

Depois de anos de fartura, seguiram-se anos de. fome. Quando, nesse período de escassez, os irmãos de José chegaram ao Egito para comprar trigo, foram ali abençoados por esse homem favorecido, seu próprio irmão. José poderia ter-se mostrado duro com seus irmãos, pelo tratamento impiedoso e cruel que recebera deles. Entretanto, mostrou-se bondoso com eles, conquistando-lhes as boas graças com estas palavras e ações:

“Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos pese aos vossos olhos por me haverdes vendido para cá; porque para conservação da vida, Deus me enviou diante da vossa face.

Pelo que Deus me enviou diante da vossa face, para conservar vossa sucessão na terra, e para guardar-vos em vida por um grande livramento.

Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, senão Deus…

E beijou a todos os seus irmãos, e chorou sobre eles; e depois seus irmãos falaram com ele.” (Gênesis 45:5, 7–8, 15.)

Eles haviam encontrado seu irmão. José, que verdadeiramente, foi o guardador de seus irmãos.

No comovente relato do bom samaritano, Jesus ensina vividamente a interpretação da lição: “Amarás teu próximo como a ti mesmo.” (Mateus 19:19.) É uma resposta cabal para a pungente questão: “Sou eu o guardador do meu irmão?”

Todo um panorama de oportunidades estende-se à nossa vista ao contemplarmos a magnitude da admoestação do Rei Benjamim, registrada no Livro de Mórmon: “Quando estais a serviço de vosso próximo, estais somente a serviço de vosso Deus.” (Mosiah 2:17.)

Ainda na semana passada, a Primeira Presidência e o Conselho dos Doze tiveram oportunidade de visitar a nova exposição histórica da Igreja, exibida no museu situado a oeste da Praça do Templo. Adorei a réplica da entrada da Ala IV — uma das alas originais do vale. Observei com muito interesse o mapa iluminado mostrando a trilha dos pioneiros, desde Nauvoo. Entretanto, meu coração comoveu-se muito vendo um carrinho-de-mão original, exposto num lugar de honra. O carrinho-de-mão transmitiu-me um silencioso mas eloqüente relato de sua longa e momentosa jornada.

Acompanhemos por um momento o Capitão Edward Martin e a companhia dos carrinhos-de-mão que ele dirigiu. Ainda que não sintamos as pontadas de fome nem experimentemos o penoso frio que penetrava seus corpos exaustos, emergiremos de nossa visita com um apreço maior pelas provações suportadas, coragem demonstrada e fé comprovada. E testemunharemos, com olhos marejados, uma dramática resposta para a pergunta: “Sou eu o guardador do meu irmão?”

“Os carrinhos-de-mão prosseguiram no dia 3 de novembro e chegaram ao rio, repleto de gelo flutuante. Parecia que, atravessá-lo exigiria mais coragem e fortaleza, do que a natureza humana poderia reunir. Mulheres recuaram e homens choraram. Alguns foram em frente, mas outros não estavam à altura da provação.

Três rapazes de dezoito anos, integrantes do grupo de socorro, apareceram para ajudá-los; e, para assombro dos presentes, carregaram praticamente todos os componentes da malfadada companhia de carrinhos-de-mão através do rio gelado. O esforço foi tão grande, a exposição ao frio tão terrível, que anos mais tarde todos eles morreram em conseqüência de seus efeitos. Quando o Presidente Brigham Young soube desse feito de heroísmo, chorou como criança e mais tarde declarou publicamente: ‘Esse feito por si só garantirá a C. Allen Huntington, George W. Grant e David P. Kimball a salvação eterna no Reino Celestial de Deus, mundos sem fim.’” (Le Roy R. Hafen e Ann W. Hafen, Handcarts to Zion, Glendale, California: The Arthur H. Clark Company, 1960, pp. 132-133.)

Nosso serviço ao próximo poderá não ser tão dramático, mas nós podemos alentar o espírito humano, agasalhar o que sente frio, confortar o coração atribulado e elevar a novas alturas almas preciosas.

Junius Burt, da Cidade do Lago Salgado, que durante muito tempo trabalhou no Departamento de Ruas, contou uma experiência tocante e inspiradora. Disse que numa manhã fria de inverno, a equipe de limpeza de ruas, à qual ele pertencia, estava removendo grandes pedaços de gelo de bueiros. O grupo habitual estava sendo auxiliado por trabalhadores temporários que necessitavam desesperadamente do trabalho. Um deles usava apenas um leve suéter e estava obviamente sofrendo com o frio. Um homem esguio, com uma bem cuidada barba, parou ao lado deles e comentou: “Você está precisando de mais agasalho do que esse sueter, numa manhã como esta. Onde está seu capote?” O trabalhador respondeu que não tinha capote. Então o passante tirou seu próprio sobretudo e entregou-o ao homem, dizendo: “Este capote é seu. É de lã grossa e vai mantê-lo agasalhado. Eu trabalho logo ali do outro lado.” Era a Rua South Temple. O bom samaritano que entrou no Edifício da Administração da Igreja para o trabalho diário, sem o seu sobretudo, foi o Presidente George Albert Smith de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Essa demonstração de abnegada generosidade revelou um coração compadecido. Sem dúvida, era o guardador do seu irmão.

Em dezembro de 1989, o belo e muito aguardado Templo de Las Vegas foi dedicado em sessões inspiradoras que se prolongaram por três dias. As mensagens e música das sessões dedicatórias edificaram cada coração e induziam o ouvinte a guardar os mandamentos de Deus, imitando o exemplo de vida reta ensinado por Jesus de Nazaré. Pensamentos egocêntricos deram lugar à consideração pelos outros. Um dos sermões deu ênfase ao ensinamento do Senhor, registrado em Mateus:

“Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam;

Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam.

Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. (Mateus 6:19–21.)

Após a sessão na qual havia sido apresentada esta passagem, foi-me entregue por um recepcionista uma carta manuscrita, cuidadosamente colocada num envelope selado. Gostaria de compartilhar convosco o conteúdo dessa comovente missiva:

“Caro Presidente Monson:

Meu marido e eu consideramos o término e dedicação desse lindo Templo de Las Vegas Nevada a melhor dádiva que poderíamos receber durante esta sagrada época. O templo é uma dádiva maravilhosa para todo o mundo; e quando o senhor falou dos santos justos que são dignos de obter as bênçãos da casa do Senhor, mas carecem dos meios financeiros para irem a um templo, nossos corações se comoveram.

Presidente Monson, nalguma parte deve haver uma família que precisa ir ao templo, porque quando meu querido companheiro e eu falamos de nossa grande alegria durante este Natal especial, comentamos que qualquer presente comprado perde o valor em comparação com o que recebemos nesses serviços dedicatórios. Em lugar de gastar os fundos reservados para o Natal com algum presente numa loja local, gostaríamos de entregar-lhe estes quinhentos dólares como ajuda para alguma família que espera fazer suas investiduras e ser selada para a eternidade. Apreciaríamos que nos ajudassse a nos presentearmos mutuamente neste ano.”

A carta não tinha assinatura. Os doadores continuam anônimos. Talvez esse irmão esteja assistindo a esta sessão de conferência geral. Se assim for, talvez se alegre sabendo que sua dádiva possibilitou a uma família digna do Distrito Vilia Real, da Missão Portugal Porto, viajar para o templo e receber ali suas preciosas bênçãos. Ao doador anônimo dessa inestimável dádiva, expresso gratidão por ter-se mostrado o guardador do seu irmão. Tenho a íntima certeza de que o Natal dele foi de alegria e repleto de paz.

Não temos meios de saber quando depararemos com o privilégio de prestar ajuda. A estrada de Jerico, que todos palmilhamos, não tem nome, e o cansado viajor que necessita de nossa ajuda pode ser um desconhecido. No entanto, muitas vezes o beneficiário de uma ação de bondade deixa de externar o que sente, e ficamos privados do vislumbre de grandeza e toque de ternura que nos motivam a fazer o mesmo. Genuína gratidão foi expressa pelo remetente de uma carta recebida recentemente na sede da Igreja. Não havia endereço do remetente, mas o carimbo postal era de Portland, Oregon:

“Ao Escritório da Primeira Presidência:

A Cidade do Lago Salgado mostrou-me certa vez hospitalidade cristã durante meus anos de andanças.

Numa viagem transcontinental de ônibus, para a Califórnia, desembarquei no terminal rodoviário da Cidade do Lago Salgado, doente e trêmulo por grave perda de sono causada por falta de medicação necessária. Na fuga precipitada de uma situação penosa em Boston, eu esquecera-me completamente de meu suprimento.

Fiquei sentado no restaurante do Hotel da Praça do Templo, desanimado, com as faces apoiadas nos punhos fechados, olhando para uma xícara de café que na verdade eu não queria tomar. Pelo canto dos olhos vi um casal aproximar-se de minha mesa. ‘Está-se sentindo bem, moço?’, indagou a senhora. Levantei a cabeça chorando e, um tanto abalado, contei minha história e o apuro em que me encontrava. Eles ouviram atenta e pacientemente meu relato meio incoerente e depois assumiram o caso. Deviam ser cidadãos eminentes. Conversaram com o gerente do restaurante depois disseram-me que eu podia comer ali o que quisesse, durante cinco dias. Levaram-me à portaria do hotel e reservaram-me um quarto por cinco dias. Em seguida levaram-me a uma clínica e providenciaram os medicamentos de que necessitava — na verdade, instrumentos fundamentais para a minha sanidade e conforto.

Enquanto eu me recuperava e fortalecia, fiz questão de comparecer diariamente aos recitais de órgão, no Tabernáculo. Os sons celestiais desse instrumento, do mais suave ao mais forte, constituem-se na música mais sublime de que tenho conhecimento. Adquiri álbuns e gravações do órgão e coro do Tabernáculo, dos quais me posso valer a qualquer hora para acalmar e fortalecer um espírito deprimido.

No derradeiro dia no hotel, antes de retomar minha viagem, devolvi a chave e lá estava uma mensagem do casal para mim: ‘Pague-nos demonstrando gentil bondade a outra alma atribulada, ao longo do seu caminho.’ Esse era o meu hábito, mas decidi ficar ainda mais atento às pessoas necessitadas de alguma ajuda na vida.

Desejo-lhes todo bem. Não sei se estes são de fato os ‘últimos dias’ de que falam as escrituras, mas sei que dois membros de sua igreja foram santos para mim, num momento de desesperada necessidade. Simplesmente achei que gostariam de saber.”

Que relato tocante. Lembra-me a experiência de Jesus, quando dez leprosos foram limpos.

“E um deles, vendo que estava são, voltou glorificando a Deus em alta voz:

E caiu aos seus pés…

E disse-lhe (Jesus): Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.” (Lucas 17:15–16, 19.)

O desejo de ajudar o próximo, a busca da ovelha perdida, nem sempre podem ter sucesso imediato. Às vezes o progresso é lento — mesmo imperceptível. Assim foi a experiência de meu velho amigo Gil Warner. Ele era um bispo recém-chamado, quando “Douglas”, um membro de sua ala, transgrediu e teve de ser privado da condição de membro da Igreja. O pai ficou muito triste; a mãe sentiu-se totalmente devastada. Douglas, pouco depois, mudou-se para outro estado. Os anos foram passando mas o bispo Warner, agora membro do sumo conselho, jamais deixou de pensar como Douglas estaria indo.

Em 1975, compareci à conferência da estaca dos Parleys, onde tivemos uma reunião de liderança do sacerdócio logo cedo, na manhã de domingo. Falei do sistema disciplinar da Igreja e da necessidade de um trabalho sério e amoroso para recuperar qualquer um que se tenha desviado. Gil Warner pediu a palavra e contou a história de Douglas, concluindo com a pergunta: “A quem cabe a responsabilidade de cuidar de Douglas e trazê-lo de volta à congregação da Igreja?” Gil disse-me depois que minha resposta à sua pergunta foi direta e dada sem hesitação: “A responsabilidade é sua, Gil, pois você era o bispo dele, e ele sabia que você se importava com ele.”

Sem Gil Warner saber, na semana anterior a mãe de Douglas havia jejuado e orado, pedindo que surgisse alguém para ajudar a salvar seu filho. Gil o descobriu quando foi inspirado a telefonar-lhe para contar que estava decidido a ajudálo.

Então Gil iniciou sua odisséia de redenção. Entrou em contato com Douglas, lembrando velhos tempos, tempos de alegria. Prestou testemunho, transmitiu amor, instilou confiança. O progresso era penosamente lento. Freqüentemente entrava em cena o desânimo; mas, passo a passo, Douglas seguia avante. Finalmente, preces foram atendidas, esforços recompensados e conquistada a vitória. Douglas foi aprovado para batismo.

A data do batismo foi marcada, os familiares se reuniram e o ex-bispo Gil Warner voou para Seattle, para a ocasião. Poderemos apreciar a suprema alegria do bispo Warner quando, vestido de branco, se viu com Douglas de pé na água da pia batismal e, erguendo o braço direito em ângulo reto, repetiu as sagradas palavras: “Tendo sido comissionado por Jesus Cristo, eu te batizo em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo.” (D&C 20:73.)

Aquele que se perdera fora encontrado. Uma missão de vinte e seis anos, marcada pelo amor e executada com determinação, terminara com sucesso. Gil Warner me disse: “Foi um dos melhores dias de minha vida. Conheço a alegria prometida pelo Senhor, quando declarou: ‘E, se acontecer que, se trabalhardes todos os vossos dias, proclamando arrependimento a este povo, e trouxerdes a mim, mesmo que seja uma só alma, quão grande será a vossa alegria com ela no reino de meu Pai!”’ (D&C 18:15.)

Se o Senhor perguntasse a Gil Warner hoje, como fez ao filho de Adão, há muitos anos: “Onde está Douglas, teu irmão?” , ele poderia replicar: “Eu sou o guardador de meu irmão, Senhor. Eis aqui Douglas, teu filho.”

Possamos todos nós, portadores do sacerdócio de Deus, demonstrar com nossa vida que somos guardadores de nossos irmãos, eu oro em nome de Jesus Cristo, amém.